Cedo demais pra dizer, mas hoje ela acordou se sentindo diferente. Lavando o único rosto pelo qual era apaixonada até ontem, calçando seus pés que se arrastam na frente, maquiando os bocejos que a normalidade provoca. Reunião, banco, supermercado e sem-número de compromissos. Paralisa diante do espelho para refletir. Uma blusa, uma sombra, uma revisão nas axilas, um gargarejo ensaiado das coisas que precisa falar a pessoas com quem não deseja estar.
Ontem ela riu sentada em cima dos tornozelos nus no meu sofá-cama, aspirando o hálito de chuva que vinha da janela. Sentiu tesão e também que a vida podia ser maravilhosa noite sim, noite talvez. Já bem cedo de manhã, ela sente-se presa em círculos sociais viciosos. Falas amenas, tapas nas costas, risos agendados, poses corretas, unhas feitas, cabelos penteados. Nem um pouco a fim de trocar ideias, dar opiniões, perguntar horas, gestos óbvios, olhares diretos de gente que conversa olho-nos-peitos. Quer ser mandado às favas? Comente do tempo. Ela prefere esperar o que os pássaros verdes vão dizer.
Ela é assim, pertence só a quem quer pertencer. Não faz questão de pisar no que bóia na superfície de alguém, rir sem graça de piada formal e comedida. Por isso rodeia, rodeia e rodeia, e se faz tonta como uma pedra de gelo imersa no uísque amargo de um copo sem profundidade. E me contou, nem gosta de uísque. E não crê em horóscopo do dia, mas queria mesmo que ele dissesse, só hoje, que eu ligaria mais tarde pra dizer que vai ficar tudo bem e a gente vai se ver depois ou amanhã. Em intervalos, procura meu rosto na coluna social, na esperança de me encontrar num anúncio de amor, dizendo que preciso sim e urgentemente dela. Eu não disse isso ainda, mas penso nela de quando em quando. Toda noite.
Ela pega um café e tenta não roer a unha do dedão, enquanto passa o dia planejando os riscos do que já nasceu pra dar errado. Coisas a ver com dinheiro, conexões e vantagens. E recebe abraços comerciais, mesmo com preguiça de relações mercadológicas. Abre a gaveta, belisca uma bolacha molenga e sente-se um pouco sozinha, tipo uma ilha. Isso, uma ilha. E todos passam por ela sem perceber que aquele aflito é um amor disfarçado, tomando aquele corpo. Acha que não crê em deus, e quase mais ninguém, mas realmente acha que às vezes deus se manifesta em forma de suspiro coberto de chocolate.
Anda tão assustada com as pessoas, logo exausta de tudo, de juntar entulhos de construções mal-feitas. Não quer esperar mais nada da primavera. Nada de amores infinitos, laços presos, casórios, fusões, longas viagens, destinos imutáveis. Nessa altura dos dias, o amor não passa de uma mão quente, sexo seguro, boas risadas e algumas faixas de Simon & Garfunkel. Só não abre mão de largar aquele eterno gosto análogo de cigarro e vodca na boca seca.
Sua exigência solitária é poder, um dia, atravessar a rua sorrindo, abraçar forte e poder dizer que, putz, foi gostoso aquele nosso tempo. Aquele, quando depois de uma tempestade transatlântica, uma ilha encostou em outra ilha, mudou radicalmente o desenho da geografia e, juntos - pelo menos por um bom tempo - formaram um arquipélago desses azul, bem bonito.
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